quinta-feira, 21 de julho de 2022

como morrem as crianças

 

numa trilha sonora da sessão da tarde, o chiclete da minha prima fazia ploc-ploc, já sem açúcar, só o cheiro forte de tutti-frutti, bagunçava minha percepção da realidade. a tarde era sempre contingente na sala da casa da minha avó — tão frio tão frio era o chão e a minha bunda colada na calcinha de algodão e os meus pés cinzas e o cheiro daquele chãofriotãofrio me anunciavam que hoje eu estaria sem saída. uma estrada muito longa para quem tem o corpo muito pequeno e próximo da noite. a única fuga para esse pequeno animal selvagem seria uma caixa de papelão capaz de absorver o mar e todos os peixes — uma passagem úmida e que pudesse ser encontrada pelo esquecimento, um escafandro à procura da sede. ao redor, paredes amareladas, como se reproduzissem o nascimento de um mito, e o papelão bravamente desafiando piratas e barquinhos de papel,  rachando, por fim, aquele chãofriotãofrio. se eu pudesse ter visto por dentro — das prateleiras, das latinhas de milho e ervilha, das bacias de bater bolo, das caixinhas de fermento, dos potes de açúcar, do cupim que bebia o querosene —, eu teria gritado com fúria e culpa para que aquela casa nunca desaparecesse. eu teria desafiado os homens e seus tratores, as edificações e tudo que se diz concreto.   

do lado de fora, ou acima do mar ou antes da parte final daquele filme, o carro de som anunciava outra nota de falecimento, a amiga da minha avó balançava os saltos no terraço da casa para prolongar as amenidades do clima e minha mãe comprava arroz pela terceira vez na semana. arrancaram tudo, de uma só vez, como um grito desgovernado. desconfio que fui enterrada entre o corredor e a sala, porque gostava de me esconder embaixo da mesa para ouvir o que não se podia revelar às crianças. da primeira vez, descobri que meu pintinho rosa shock havia morrido de um susto e o caminhão de lixo iria recolher o corpinho dele. da segunda vez, que eu era impossível. da última, um ruído.

 

quarta-feira, 25 de maio de 2022

sessão 13/04

 não consegui sair de casa

estava tudo quente e muito vermelho


liguei pra terapeuta desconcertada

porque a culpa era minha

a dor incrivelmente estável 


dessa vez quis muito

verdadeiramente 

cancelar a terapia e a sanidade

mas porque sou covarde

continuo estável 


precisei transferir pro rosto dela

todos os espelhos humilhantes e

masculinos 

sem performance


separei a humilhação como o ato

que deveria ser contado para quem

não estivesse presente


entendi mais uma vez que meu rosto

é um estranho

 imprevisível 

o desconhecido 


eu acharia bonito 

muito bonito se esse

rosto

não fosse real mas 

uma narrativa sobre a cura


mas ele continua a insistir 

que não era para estar aqui

e pede para que eu repita

como se fosse uma câmera 

decisiva


"este rosto não é meu

este rosto não é a minha narrativa

este rosto aparece apenas

como um reflexo que me dizem ser

a realidade"


a terapeuta estava apressada

olhando compulsoriamente 

pro relógio que determinava

o tempo que eu poderia

confiar em alguém

sexta-feira, 23 de julho de 2021

josefina

minha gata me encara
como se o sol fosse uma
resposta, uma criança,
um segredo, uma sombra

e eu retribuo com crueldade
aperto seus ossinhos
para quebrar todas as promessas
da minha infância
aperto seus ossinhos
para que o amor
me desconheça
aperto seus ossinhos
para que minha maldade
conserte meu cansaço
aperto seus ossinhos
para que ela não derrube
a casa

estou na rua
mas é uma rua passageira
meu pé não toca o chão
e nem posso saber o seu nome
é um desfiladeiro gigante
e muito perigoso
é perigoso
querer o controle
do que não se pode
repetir

minha gata caga
ao lado da caixa de areia
todos os dias
seu cocozinho é minha
pedra de sísifo 

testemunha

 

há muito tempo esse quarto existe

— ele é assim: quando não encontro

a palavra.

 

uma embalagem que perde

o formato original

porque os erros são insistentes

e seguros.

 

uma voz me questiona

/ o que te sustenta?/

e a embalagem amassada

volta à prateleira

/a minha mão hesita num sino parado/

 

estive seguindo uma fila

inexistente

de uma mulher à outra

olhava pro chão tentando

parar meus pés

fora da linha

 

sem alcance

 

estou testemunhando

o meu desaparecimento.

meu útero não sou eu

 

queria mãos atentas

sustentando /forte/

um balanço enferrujado

mãos sem medo

da queda.

 

filhos que nunca

me farão

a primeira

pergunta

filhos que nunca

tentarei encontrar:

dentro de armários,

embaixo da cama,

atrás da porta,

no meu reflexo.

 

minha filha nunca

me odiará

jamais terei a

resposta errada

nem a oração

dos viajantes

sem fim

 

na minha mochila,

nenhuma roupa ou fralda

de reserva

 

nem mesmo uma certidão amarelada

que te prove

— aquele outro jamais

voltará para mim.

 

sombra

 

uma redoma

mostrando o caminho

são duas voltas:

o susto

e

a redenção

 

mas se você chegar

muito cedo

ouvirá o princípio

das pedras a cantar do alto

como se fosse uma criança

elevada a uma altitude

em que se quebra

o gelo com os cílios

no silêncio mais

insuportável

de quem chega antes

 

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Missa do Galo

Nada alcançava o silêncio do sino. O cheiro que vinha da cozinha denunciava a data fatídica da solidão de Jesus, nu e nascido. Conceição já não pensava mais na figura fantasmagórica do marido, sentia o corpo purificado por não mais precisar dividir a pele com um estranho. No celular, as notificações da família distante, "feliz natal!", acompanhadas de anjinhos melancólicos de calendário de cozinha. D. Inácia, a mãe de Conceição, respondia todas as mensagens com muita paciência e medo; a boca ressecada, os olhos ressecados, o padre, do outro lado da avenida, ressacado. Conceição fitava o espelho memorizando os últimos minutos de sobriedade. O marido não aparecera, mas D. Inácia franzia a testa como quem fala "não vá criar confusão por isso, são coisas de homem, minha filha". As luzes empalideciam a rua com o pisca-pisca das casas enquanto os fiéis marchavam para a igreja. Eram poucos, alguns desacreditados; outros velhos demais para pedir perdão. A bateria do celular de D. Inácia finalmente descarregara e, num bocejo libertador, a mulher descobrira que poderia ir dormir. Tirou a roupa e achou-se ridícula. Adormecera.


Conceição já estava na metade do vinho quando recebeu um match de um rapaz aparentemente confuso. Talvez 17 anos, talvez 20 anos. Nunca saberemos. Dizia ser um assíduo leitor de Machado de Assis, mas não aparentou pedantismo, só imaturidade. Ela sentiu que o corpo de 30 anos ainda poderia se teletransportar para o abismo do rapaz. Gostava do vinho quente. Conversaram sobre mapa astral, livros, política e natal. Conceição ansiava que o rapaz adiantasse o propósito daquele encontro, uma vez que ela não pretendia revelar nada além do que a encenação dos seios duros e das pernas inquietas. Sabiam que algo estava a um passo de transpassar a tela do celular. Um gemido, uma foto, um pedido de socorro. Ele queria mostrar profundidade, mas Conceição já estava no fundo do poço, e impacientou-se quando sentiu a garrafa leve e a cama flutuante.Voltou a vestir a roupa e achou-se ridícula. Bloqueou o rapaz e adormecera. Do outro lado da avenida, alguém tentava acreditar em deus. 

(Teresa Coelho)
14/09/2016

OBS.: Releitura do conto de Machado de Assis de mesmo título