numa trilha sonora da sessão da
tarde, o chiclete da minha prima fazia ploc-ploc, já sem açúcar, só o cheiro
forte de tutti-frutti, bagunçava minha percepção da realidade. a tarde era
sempre contingente na sala da casa da minha avó — tão frio tão frio era o chão
e a minha bunda colada na calcinha de algodão e os meus pés cinzas e o cheiro
daquele chãofriotãofrio me anunciavam que hoje eu estaria sem saída. uma
estrada muito longa para quem tem o corpo muito pequeno e próximo da noite. a
única fuga para esse pequeno animal selvagem seria uma caixa de papelão capaz
de absorver o mar e todos os peixes — uma passagem úmida e que pudesse ser
encontrada pelo esquecimento, um escafandro à procura da sede. ao redor,
paredes amareladas, como se reproduzissem o nascimento de um mito, e o papelão bravamente
desafiando piratas e barquinhos de papel, rachando, por fim, aquele chãofriotãofrio. se
eu pudesse ter visto por dentro — das prateleiras, das latinhas de milho e ervilha,
das bacias de bater bolo, das caixinhas de fermento, dos potes de açúcar, do
cupim que bebia o querosene —, eu teria gritado com fúria e culpa para que
aquela casa nunca desaparecesse. eu teria desafiado os homens e seus tratores,
as edificações e tudo que se diz concreto.
do lado de fora, ou acima do mar
ou antes da parte final daquele filme, o carro de som anunciava outra nota de
falecimento, a amiga da minha avó balançava os saltos no terraço da casa para
prolongar as amenidades do clima e minha mãe comprava arroz pela terceira vez
na semana. arrancaram tudo, de uma só vez, como um grito desgovernado.
desconfio que fui enterrada entre o corredor e a sala, porque gostava de me
esconder embaixo da mesa para ouvir o que não se podia revelar às crianças. da
primeira vez, descobri que meu pintinho rosa shock havia morrido de um susto e
o caminhão de lixo iria recolher o corpinho dele. da segunda vez, que eu era
impossível. da última, um ruído.