Não sei exatamente quando me dei
conta da posição exata dos móveis. Há dois anos e meio, o apartamento era um
vácuo branco, cheio de remendos e baratas assassinadas -- e uma história de mais de
30 anos, com duas crianças mortas e infiltração no banheiro. Todos os sonhos
que eu não contara estariam atravessando o corredor e fugindo pela varanda, a
qual não limpo há duas semanas. Os sonhos são os dias: desforrar a cama, comer
sucrilhos com banana e mel, assistir série, odiar o corpo, chegar atrasada, não conversar, esperar o ônibus, não ser notada, não morrer até cruzar a
avenida, tirar a roupa e ter o direito de não querer mudar. Essas são as coisas
que não sabemos que existem, porque não podemos nomeá-las, porque não
significam. Não evitamos o apodrecimento das frutas, elas fadam o destino como
quem marcha para ser executado. Frutas não se apaixonam. Frutas não dizem adeus.
Somos biologicamente irreversíveis. Tu não sabes qual é parte mais solitária da
vida -- o quadro esquizofrênico da tua avó, o pote vazio de manteiga, os
presentes da tua ex, a música do vizinho, a televisão desligada, a mensagem que
quebrou teu coração, a comida que sobra, o lençol sujo, o copo esquecido, o
momento de girar a chave duas vezes e enfrentar o escuro. Há os dias em que tua
família vem te visitar, e tu não precisas encarar as coisas sem nome. Tu vais
sentar silenciosamente, pedir a garrafa de café à tua mãe, o queijo à tua avó e
pão ao teu padrasto. Em câmera lenta o amor nas coisas insignificantes, mas não
temos muita certeza, até chegar o domingo -- e as churrascarias lotadas e as
crianças gritando e as esposas infelizes e os maridos comendo a colega de
trabalho e aceitação de que tudo é como tem que ser. Deus só existiu quando
adormeci no pai-nosso. Ela só existia subindo as escadas e me deixando à beira
do precipício. Deveríamos nos despedir todos os dias. Deveríamos saber a hora
exata de arrastar os móveis. Deveríamos ser finitos, de uma só vez.
(Teresa Coelho)
17/06/2015