sábado, 27 de fevereiro de 2010

Nascer

Eu nasci com um gosto estranho de indelicadeza mútua. Quando meus olhos se abriram pela primeira vez, lembrei que tinha nascido e que não havia outro jeito, se não existir mesmo. Parir é como uma mágica, de repente, sai da abertura do pecado, uma vida. Você já nasce chorando, enquanto os outros riem...
Depois de algum tempo aprendi a andar, mas eu não gostava de ficar equilibrada em mim mesma, eu queria voar! Voar seria mais uma sensação de sonho, de fuga e prazer. Correr cansa. Comecei a expulsar de dentro de mim alguns sons, algumas vontades, quis ter a minha própria linguagem; ainda lembro-me do ataque de gritos e lágrimas, de quando me fizeram máquina da de suas comodidades. Foi um milagre...
Só que agora há algo me devorando, arduamente me obrigando a expelir tudo o que me estremece e me expulsa do que é normal. A gente se entrega involuntariamente, despenca de súplicas escondidas durante a noite, rasteja em silêncio para não incomodar, prova com os olhos a única saliva que lhe atrai... Que dor tem a morte quando não se tem vida? A cada abandono, de cada noite, você deixou o romântico que existia em mim, completamente triturado e assiduamente exposto ao seu desprezo. Você tem sido especial demais para se tornar concreta... E eu, concreta demais para me tornar especial para você.
Se um dia eu descobrir que a alma sabe voar e tem a sua própria linguagem, eu deixarei de viver para nascer de novo e de novo e de novo... Até que alguém canse de me parir.
(Teresa Coelho)
27/02/2010

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Um conto à Chuva

Sim, chovia muito. A água que caía não simplesmente molhava como apressava calculadamente os passos daquela menina que se vestia de púrpura e recolhia as folhas secas e sujas que a terra esquecera a beleza. Era um dia que se confundira com a noite. Houve algo que a fizera parar naquele instante, como se uma vida inteira tivesse que parar, e parou. Sentou-se num banco molhado, de um branco sujo; sentiu o gelo penetrar suas coxas. Sentiu frio e solidão. Na verdade era o que ela era fria e sozinha. Abaixou a cabeça por um instante, observou cada detalhe do seu tênis desgastado, perdido nos detalhes, via cada gota de água que escorria do seu cabelo indo de encontro com as mãos apoiadas no joelho. Foi levantando o pescoço lentamente, de acordo com o seu olhar que percorria a praça vazia, o lugar estava apenas com o seu modo de observar. Tudo aquilo que a cercava, a fez chorar, como se não bastasse nada do que ela fora soltou um grito, mas um grito delicado que ao mesmo tempo fora um desabafo, uma súplica, um pedido de socorro ou apenas nada. Após o grito sentiu o seu corpo desfalecer-se, levantou a cabeça para o céu, já com os olhos fechados, começou a arranhar suavemente o pescoço até chegar aos seios. A chuva não parava. Ela descobrira que ainda estava a existir dentro dela alguma coisa que ninguém tinha, porque ninguém poderia descobrir. Talvez quando chegasse em casa, iria esquecer de tudo o que descobrira numa única tarde. Naquela tarde, naquele banco, ela poderia ter morrido de amor, ter se matado com o vento, não iria importar, era apenas a chuva, o vazio e o que há pouco tempo descobrira dentro de si. Mas a comodidade de ser humano é sempre cruel com ele mesmo. Levantou-se num suspiro, seu ombro caiu, seu choro já era ofegante. Algo acontecera com aquela menina, já não era mais uma menina. A chuva a fez mulher. Deixara cair de sua mão trêmula as folhas secas que pertenciam a beleza esquecida, tirou o tênis, necessitava sentir a frieza que tanto esquentou a sua alma. Caminhava sem compasso, quase não piscava os olhos, quase não pertencia a esse mundo. A água batia queimando o seu pescoço arranhado, o sangue lhe dava prazer. O mundo deixou de ser o seu abrigo, era preciso inventar uma nova espécie de gente. Então se recriou. Mas era uma recriação passageira, ela só precisara mudar enquanto estivesse na chuva, enquanto seu corpo levitava o gozo que a alma escondia por travessura. Só que a chuva um dia teve que parar e ela voltar para casa. Em frente à casa só se podia ver a roupa molhada, a dúvida de abrir a porta ou a vontade de fugir de vez. No entanto, seria demais para ela descobrir aquele desfecho.

(Teresa Coelho)22/ 02/ 2010