minha gata me encara
como se o sol fosse uma
resposta, uma criança,
um segredo, uma sombra
e eu retribuo com crueldade
aperto seus ossinhos
para quebrar todas as promessas
da minha infância
aperto seus ossinhos
para que o amor
me desconheça
aperto seus ossinhos
para que minha maldade
conserte meu cansaço
aperto seus ossinhos
para que ela não derrube
a casa
estou na rua
mas é uma rua passageira
meu pé não toca o chão
e nem posso saber o seu nome
é um desfiladeiro gigante
e muito perigoso
é perigoso
querer o controle
do que não se pode
repetir
minha gata caga
ao lado da caixa de areia
todos os dias
seu cocozinho é minha
pedra de sísifo
sexta-feira, 23 de julho de 2021
josefina
testemunha
há muito tempo esse quarto
existe
— ele é assim: quando não
encontro
a palavra.
uma embalagem que perde
o formato original
porque os erros são
insistentes
e seguros.
uma voz me questiona
/ o que te sustenta?/
e a embalagem amassada
volta à prateleira
/a minha mão hesita num sino
parado/
estive seguindo uma fila
inexistente
de uma mulher à outra
olhava pro chão tentando
parar meus pés
fora da linha
sem alcance
estou testemunhando
o meu desaparecimento.
meu útero não sou eu
queria mãos atentas
sustentando /forte/
um balanço enferrujado
mãos sem medo
da queda.
filhos que nunca
me farão
a primeira
pergunta
filhos que nunca
tentarei encontrar:
dentro de armários,
embaixo da cama,
atrás da porta,
no meu reflexo.
minha filha nunca
me odiará
jamais terei a
resposta errada
nem a oração
dos viajantes
sem fim
na minha mochila,
nenhuma roupa ou fralda
de reserva
nem mesmo uma certidão
amarelada
que te prove
— aquele outro jamais
voltará para mim.
sombra
uma redoma
mostrando o caminho
são duas voltas:
o susto
e
a redenção
mas se você chegar
muito cedo
ouvirá o princípio
das pedras a cantar do alto
como se fosse uma criança
elevada a uma altitude
em que se quebra
o gelo com os cílios
no silêncio mais
insuportável
de quem chega antes