Nada
alcançava o silêncio do sino. O cheiro que vinha da cozinha denunciava a data
fatídica da solidão de Jesus, nu e nascido. Conceição já não pensava mais na
figura fantasmagórica do marido, sentia o corpo purificado por não mais
precisar dividir a pele com um estranho. No celular, as notificações da família
distante, "feliz natal!", acompanhadas de anjinhos melancólicos de
calendário de cozinha. D. Inácia, a mãe de Conceição, respondia todas as
mensagens com muita paciência e medo; a boca ressecada, os olhos ressecados, o
padre, do outro lado da avenida, ressacado. Conceição fitava o espelho
memorizando os últimos minutos de sobriedade. O marido não aparecera, mas D.
Inácia franzia a testa como quem fala "não vá criar confusão por isso, são
coisas de homem, minha filha". As luzes empalideciam a rua com o pisca-pisca
das casas enquanto os fiéis marchavam para a igreja. Eram poucos, alguns
desacreditados; outros velhos demais para pedir perdão. A bateria do celular de
D. Inácia finalmente descarregara e, num bocejo libertador, a mulher descobrira
que poderia ir dormir. Tirou a roupa e achou-se ridícula. Adormecera.
Conceição
já estava na metade do vinho quando recebeu um match de um rapaz aparentemente confuso. Talvez 17 anos, talvez 20
anos. Nunca saberemos. Dizia ser um assíduo leitor de Machado de Assis, mas não
aparentou pedantismo, só imaturidade. Ela sentiu que o corpo de 30 anos ainda
poderia se teletransportar para o abismo do rapaz. Gostava do vinho quente.
Conversaram sobre mapa astral, livros, política e natal. Conceição ansiava que
o rapaz adiantasse o propósito daquele encontro, uma vez que ela não pretendia
revelar nada além do que a encenação dos seios duros e das pernas inquietas. Sabiam
que algo estava a um passo de transpassar a tela do celular. Um gemido, uma foto,
um pedido de socorro. Ele queria mostrar profundidade, mas Conceição já estava
no fundo do poço, e impacientou-se quando sentiu a garrafa leve e a cama
flutuante.Voltou a vestir a roupa e achou-se ridícula. Bloqueou o rapaz e
adormecera. Do outro lado da avenida, alguém tentava acreditar em deus.
(Teresa Coelho)
14/09/2016
OBS.: Releitura do conto de Machado de Assis de mesmo título
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