quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Missa do Galo

Nada alcançava o silêncio do sino. O cheiro que vinha da cozinha denunciava a data fatídica da solidão de Jesus, nu e nascido. Conceição já não pensava mais na figura fantasmagórica do marido, sentia o corpo purificado por não mais precisar dividir a pele com um estranho. No celular, as notificações da família distante, "feliz natal!", acompanhadas de anjinhos melancólicos de calendário de cozinha. D. Inácia, a mãe de Conceição, respondia todas as mensagens com muita paciência e medo; a boca ressecada, os olhos ressecados, o padre, do outro lado da avenida, ressacado. Conceição fitava o espelho memorizando os últimos minutos de sobriedade. O marido não aparecera, mas D. Inácia franzia a testa como quem fala "não vá criar confusão por isso, são coisas de homem, minha filha". As luzes empalideciam a rua com o pisca-pisca das casas enquanto os fiéis marchavam para a igreja. Eram poucos, alguns desacreditados; outros velhos demais para pedir perdão. A bateria do celular de D. Inácia finalmente descarregara e, num bocejo libertador, a mulher descobrira que poderia ir dormir. Tirou a roupa e achou-se ridícula. Adormecera.


Conceição já estava na metade do vinho quando recebeu um match de um rapaz aparentemente confuso. Talvez 17 anos, talvez 20 anos. Nunca saberemos. Dizia ser um assíduo leitor de Machado de Assis, mas não aparentou pedantismo, só imaturidade. Ela sentiu que o corpo de 30 anos ainda poderia se teletransportar para o abismo do rapaz. Gostava do vinho quente. Conversaram sobre mapa astral, livros, política e natal. Conceição ansiava que o rapaz adiantasse o propósito daquele encontro, uma vez que ela não pretendia revelar nada além do que a encenação dos seios duros e das pernas inquietas. Sabiam que algo estava a um passo de transpassar a tela do celular. Um gemido, uma foto, um pedido de socorro. Ele queria mostrar profundidade, mas Conceição já estava no fundo do poço, e impacientou-se quando sentiu a garrafa leve e a cama flutuante.Voltou a vestir a roupa e achou-se ridícula. Bloqueou o rapaz e adormecera. Do outro lado da avenida, alguém tentava acreditar em deus. 

(Teresa Coelho)
14/09/2016

OBS.: Releitura do conto de Machado de Assis de mesmo título

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